Por Nathália Kuhl
Não está no reflexo do Supremo Tribunal Federal (STF) a touca amarela de dona Gê, a Gerlane. O amarelo em sua cabeça combina com o tom do frango com açafrão que ela acabara de servir aos clientes.
O gramado também lembra o amarelo do Cerrado na época da seca. Com 37 graus, o calor vem de cima e de baixo, também do fogo que esquenta as panelas de macarrão.
Mas Gerlane mantém o sorriso no rosto e se transforma na principal vendedora de marmitas no local que compõe o cartão-postal do poder, na capital do país. Ela serve cerca de 80 clientes diariamente.
A história da cozinheira revela como a insistência diante dos percalços do mercado de trabalho a conduziu a dar um novo sabor à vida. “Meu sonho ainda é montar um restaurante, mas sem sair da rua”, disse.
Dona Gê é uma entre os 32,5 milhões de autônomos no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ela afirma que, com “muita luta”, faz questão de pagar uma escola particular para a filha, Maria Eduarda. A menina foi o principal motivo que levou Gerlane a deixar um emprego formal para ganhar a vida vendendo marmitex. O problema era que ela mal via a filha, que, na época, tinha apenas oito meses de vida. Saía todos os dias, de domingo a domingo, para trabalhar das 7h30 às 19h em uma loja de roupas para gestantes.
Atualmente, o dia de dona Gê começa às 4h da manhã. Ela se levanta enquanto a filha e toda a vizinhança do Setor O, na Ceilândia, ainda dormem. Pronta para mais um dia de batalha, às 4h30 já está na cozinha, de segunda a sexta, preparando comida, suco e sobremesa para os clientes. Até as 9h30, quando deixa a filha na casa da mãe, já arrumou as vasilhas e está a caminho do centro de Brasília.
Às 10h, ela já está em frente ao STF, descarregando o carro para montar a tenda no meio do estacionamento. “Os meninos que são flanelinhas aqui me ajudam muito. Eles guardam meu ponto todo dia até eu chegar. Sabem da batalha de cada um”, conta. Às 11h, os clientes das redondezas começam a chegar. Tem gente que até brinca: “Dona Gê, que fila é essa? Tá dando comida de graça, é?”. Não. Não é de graça. A marmita pequena tem um preço acessível, e o próprio cliente escolhe a combinação. “A marmita é bem servida”, afirma Leonardo Castro, funcionário terceirizado da Câmara.
Quem chega às 12h30 dificilmente consegue ser atendido. Tanto que, às 13h, Gerlane já está carregando o carro novamente para ir embora. Às 15h, vai ao mercado fazer compras e volta para organizar a casa. Às 17h40, busca a filha na escola. Depois, retorna para casa, afinal, no dia seguinte, tudo começa de novo. À noite, ainda lava os utensílios, assiste à TV e vai dormir às 22h30.
Pepinos
“Minha mãe sempre foi chefe de cozinha. Na época, ela estava cansada de trabalhar para os outros. Tinha um dinheiro guardado e decidimos abrir um restaurante. Eu sempre gostei de cozinhar e cozinhava bem, mas não para muitas pessoas”, contou, enquanto organizava os utensílios antes de voltar para casa após mais um intenso dia de trabalho. Dona Gê diz que nada foi fácil nessa jornada e agradece a Deus e a Nossa Senhora Aparecida, de quem é devota.
As despesas fixas do restaurante giravam em torno de R$ 10 mil por mês, e mal sobrava para sustentar mãe, filha e neta. Diante das dívidas, decidiram fechar o negócio. A mãe, Duda, conta que foi frustrante encerrar o restaurante: “Eu me senti responsável pela minha filha naquele momento. Ela estava sob minha responsabilidade, já que eu a havia tirado do emprego”, lembra. Quando fecharam as portas, só restaram R$ 180, dinheiro que usaram para comprar insumos e tentar recomeçar.
Com um isopor e coragem, Gerlane e a mãe voltaram à luta. O primeiro ponto foi em Águas Claras, região administrativa. No primeiro dia de vendas na rua, venderam apenas cinco marmitas e voltaram para casa com 15. Mas, no caminho de volta, decidiram doar a comida que havia sobrado.
Ali não havia espaço para desistência. A mulher que já havia passado por tantas dificuldades na vida não se deixou abater pelo primeiro dia decepcionante de trabalho. “A gente foi indo, foi fazendo, e vimos que em Águas Claras não estava tão bom assim”, lamenta. A segunda tentativa foi no centro de Brasília. Receberam a dica de se aproximar da Praça dos Três Poderes. Mãe e filha decidiram mudar a estratégia. A mãe foi para o anexo do Ministério da Fazenda, e Gerlane foi para a Câmara dos Deputados. Foi ali que o dinheiro e o otimismo começaram a voltar.
O movimento melhorou um pouco, mas, com o auge dos food trucks, o público passou a rejeitar marmitas prontas. A estratégia então foi permitir que os clientes montassem seus próprios pratos. Em um dia de muito movimento, encontrei Kledson Andrade. Ele é cliente, ou melhor, amigo, da dona Gê desde os tempos de Águas Claras. “Agora tem mais opções, variedades. O atendimento sempre foi muito bom, a comida também. Mas agora a estrutura está melhor, ela inovou no cardápio. Como aqui quase todos os dias. Mesmo quando estou sem dinheiro, ela deixa pendurado pra mim”, contou.

Cheiro de feijão
Foi em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) que ela formou sua clientela. Dona Gê conta que conquista as pessoas com a simpatia que entrega em cada marmita, servida em uma embalagem de isopor branco. Com orgulho, afirma que prepara de seis a oito tipos de carne por dia. Empreendedora nata, recentemente passou a oferecer um serviço em que o cliente pode montar seu próprio prato de macarrão.
“Vamos almoçar!”, ela me convida. O cheiro de feijão toma conta do ar. Nas marmitas, arroz, feijão, salada e carne. O segredo, segundo ela, é oferecer comida com “gosto de casa”. Os clientes chegam. Gerlane serve a todos com atenção e um sorriso no rosto. “Eu estudo, pesquiso, tenho um grupo no WhatsApp onde mando as novidades para os clientes. Sempre entrego uma lembrancinha para eles.”
Leonardo Castro é cliente da Dona Gê há três anos. Ele confirma: “Ela vai melhorando cada vez mais, sempre aceita a opinião dos clientes. Na maioria das vezes, é só elogio.”
Segundo Leonardo, o custo-benefício também é um atrativo: “Com o valor de um almoço lá dentro da Câmara, eu consigo almoçar três dias aqui. Agora, às 12h30, praticamente não tem mais nada, a gente tem que vir cedo, senão fica sem. Aqui sempre tem fila. Minha sala é virada pra cá. Quando vejo que a fila está mais tranquila, já aviso o pessoal pra descer e pegar a marmita.”
Ele elogia ainda mais: “A marmita é bem servida, tem variedade, e o atendimento faz a diferença. A gente acaba virando amigo da Dona Gê. Tem esse lado bom também.”
Cardápio
A filha, Maria Eduarda, ou Dudinha, como prefere ser chamada, diz que não se lembra muito da época em que a mãe trabalhava em uma loja de roupas para gestantes, mas entende bem o quanto o trabalho atual da mãe é exigente. “Gosto muito do trabalho dela, mas é muito cansativo. Por isso, quero estudar e me tornar médica.”
Ser autônomo no Brasil realmente não é fácil. O professor de economia Carlos Alberto Ramos explica que, como não há vínculo empregatício com carteira assinada, os trabalhadores autônomos têm poucos direitos assegurados pela legislação.
Dona Gê escolheu esse caminho e, a cada hora do almoço, é escolhida de novo por quem valoriza comida de verdade, servida com afeto.
No caso específico de Dona Gê, que contribui como Microempreendedora Individual (MEI), a situação é um pouco mais favorável. “Se ela adoecer e ficar impossibilitada de trabalhar por um período mais longo, tem direito ao auxílio, desde que contribua para a Previdência.
Mas se for algo como uma gripe e ela não puder trabalhar por dois ou três dias, seu rendimento será diretamente afetado, já que, como autônoma, depende do que vende diariamente”, explica o economista.
Edição de Luiz Claudio Ferreira