A Trágica Morte de Alícia Valentina, 11 anos


Não é exagero dizer que feminicídios se tornaram rotineiros no Brasil. Todos os dias, em média, quatro mulheres são assassinadas em decorrência de serem mulheres. Venho escrevendo sobre algumas delas para este jornal, e sentindo por seus familiares e por todas nós. Nesta semana, no entanto, meu peito apertou de um jeito diferente.

Foi em choque que li sobre a morte de Alícia Valentina, de 11 anos. A menina foi espancada no banheiro de sua escola por quatro garotos e uma garota. A polícia investiga se a agressão aconteceu por Alícia ter se recusado a “ficar” com um colega.

Imaginar a cena e a morte da menina, resultado de traumatismo craniano, foi como assistir, diante dos olhos, a uma versão infantil de um roteiro mórbido, que não para de se repetir: uma mulher, ou, nesse caso, uma menina, diz não ou desagrada de alguma forma um sujeito, que fica irritado e vai para cima dela, sozinho ou com a conivência de outras pessoas, resultando na morte da vítima.

Só neste ano, aqui no Brasil: Taís Bruna foi esfaqueada por dizer não. Raíssa Suellen foi enforcada por dizer não. Gabrielly Simões Silva foi baleada por dizer não. Ana Carolina de Almeida foi asfixiada por dizer não. Centenas de outras mulheres foram assassinadas por, de alguma forma, frustrarem um desejo masculino.

De quem é a culpa? Daqueles que perpetraram o ato, obviamente, mas o caso de Alícia Valentina também instiga outras perguntas: de onde vem tamanha intolerância por parte dos meninos? De onde vem tamanho desprezo pela vida das mulheres?

Quem assistiu a série “Adolescência” ou leu alguns livros sobre esse assunto sabe que esse software mental foi instalado nos meninos —e não só neles, em todos nós— por um sistema chamado patriarcado, e “otimizado” pelas redes sociais, com seu potencial para disseminar o ódio.

A morte de Alícia, no entanto, nos convida a olhar esse quadro mais a fundo, a encarar como a nossa sociedade cria meninos, desde seu primeiro dia de vida —momento em que, muitas vezes, terão a chance única de chorar sem serem reprimidos.

Dali em diante, a maioria dos meninos será criada para engolir o choro e não expressar sentimentos, com exceção da raiva, que não é apenas aceita, é vista como um sinal de virilidade.

“Por mais que os adultos reclamem da raiva dos adolescentes, a maioria deles acha mais confortável confrontar um adolescente revoltado do que um que esteja tomado pela tristeza e não consiga parar de chorar”, pontua bell hooks.

Ou seja: para a maioria dos meninos é mais fácil e aceitável falar a linguagem da raiva. Acobertar a dor com a raiva. E assim eles vão ficando cada vez mais isolados e suscetíveis a reações extremas e agressivas, muitas vezes potencializadas por uma violência observada em games e na pornografia.

Até que um dia acordamos com a notícia da morte de Alícia Valentina. Ou de Taís Bruna. Quando entrevistei o irmão de Taís, a fim de escrever para ela um tributo, o que mais me chamou a atenção nem foi a sua tristeza, mas a sua perplexidade diante de um gesto tão brutal que parece não ter explicação.

A explicação existe, mas, enquanto pais, mães, escolas, governo e sociedade não assumirem seu papel no combate sistemático à misoginia, seguiremos chorando sobre túmulos e números.

(*) Giovana Madalosso, escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras, através da Folha de S.Paulo

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.



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