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- Author, Caio Quero
- Role, Diretor de Redação, BBC News Brasil
Em setembro de 2018, quando Jair Bolsonaro fazia campanha em Juiz de Fora (MG), um homem de 40 anos atravessou a multidão e esfaqueou no estômago o então candidato à Presidência.
Imagens de Bolsonaro se contorcendo em dores, vestido com uma camisa da seleção brasileira, foram compartilhadas milhões de vezes e transmitidas inúmeras vezes pela televisão.
O ex-capitão do Exército sobreviveu. E o choque e a comoção causados pelo ataque alimentaram sua imagem de outsider e ajudaram a levá-lo à vitória nas eleições, algumas semanas depois.
Sete anos se passaram e o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou o ex-presidente culpado de planejar um golpe de Estado. Bolsonaro foi condenado a mais de 27 anos de prisão e, frente a isso, sua carreira política parece encerrada.
Mas o ex-presidente permanece sendo um dos políticos mais importantes das últimas décadas. E, com seus aliados já em defesa da sua anistia, sua influência e até a perspectiva do seu retorno ainda pairam sobre o futuro do Brasil.
O longo caminho até o poder
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A retórica inflamada de Jair Bolsonaro fez com que ele nunca fosse levado a sério pela maior parte do establishment político brasileiro, até ser eleito presidente.
Em julho de 2018, três meses antes da eleição, eu era chefe da redação da BBC News Brasil em São Paulo.
Nas conversas com especialistas em pesquisas, políticos e líderes empresariais, havia um claro consenso: mesmo liderando na maioria das pesquisas, Bolsonaro não conseguiria se eleger. Ele não contava com a máquina de um partido importante e seu apoio iria rapidamente se esvanecer, quando começasse o horário político na televisão.
Bolsonaro é um ex-militar que deixou o Exército depois de defender aumento salarial para os militares. Ele também foi acusado (e inocentado) de planejar um ataque à bomba, em meio a protestos salariais nos anos 1980.
Bolsonaro, então, deu início a uma carreira de três décadas como congressista, ficando conhecido pelas suas declarações incendiárias e pela defesa da ditadura militar (1964-1985).
Por décadas, ele foi presença constante em programas de entrevistas na televisão, manifestando-se contra a democracia e elogiando o regime autoritário.
Em uma entrevista em 1999, ele declarou que, se fosse eleito presidente, daria um golpe de Estado no mesmo dia da posse e “terminaria o trabalho” da ditadura, matando 30 mil pessoas.
O primeiro, segundo ele, seria o então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ao longo dos seus sete mandatos no Congresso, Bolsonaro permaneceu à margem do establishment político brasileiro — um outsider. Mas, em 2018, era exatamente o que os brasileiros queriam.
O país havia passado por cinco anos turbulentos: protestos em massa em 2013, uma profunda recessão, o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e a extensa investigação da Lava Jato.
O inquérito da Lava Jato comprometeu políticos de todo o espectro, mas atingiu com mais força o PT de Lula e Dilma Rousseff, que governaram o país entre 2003 e 2016.
Em abril de 2018, o ex-presidente Lula (com sua imensa popularidade, após ter deixado o cargo com mais de 80% de aprovação) foi preso por acusações de corrupção, posteriormente anuladas pelo STF.
Para muitos brasileiros, todos os políticos pareciam comprometidos. E Bolsonaro viu sua oportunidade.
Basicamente usando as redes sociais, ele conseguiu reunir uma ampla coalizão: a classe média e baixa, frustrada com o PT e com a sensação de corrupção generalizada; uma comunidade evangélica conservadora, que já representava mais de 26% da população; elementos da polícia e das Forças Armadas; militantes de extrema-direita; setores empresariais insatisfeitos com a economia; e — provavelmente, o mais importante — milhões de brasileiros comuns, que simplesmente acreditavam que era hora de mudança.
Em outubro de 2018, esta coalizão reuniu forças para elegê-lo para o poder. E seu mandato não se parecia em nada com nenhum outro governo brasileiro, desde o retorno do país à democracia, nos anos 1980.
O outsider que mudou tudo
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Bolsonaro conseguiu transformar a direita brasileira em um movimento de massa, pela primeira vez na história. Mas traduzir esse apoio em governo foi outra questão.
Ele montou um ministério com pouca experiência na administração federal e precisou de forte apoio de oficiais militares para preencher cargos fundamentais.
Seu governo apoiou as empresas e se alinhou diplomaticamente com os Estados Unidos de Donald Trump, considerado uma inspiração por Bolsonaro. E também com outros governos conservadores, da Hungria e de Israel.
Bolsonaro enfraqueceu a fiscalização e relaxou a proteção ao meio ambiente, favorecendo o agronegócio. O resultado foi um pico de desmatamento na Amazônia e em outras regiões do país, despertando a ira internacional.
Mas os verdadeiros desafios vieram com a pandemia, em 2020. Desde o começo, Bolsonaro se opôs ao distanciamento social, defendendo que ele prejudicaria a economia.
Em diversas ocasiões, ele participou de manifestações em massa, desafiando abertamente a orientação de uso de máscaras e distanciamento.
Em março de 2020, ele comparou a covid-19 com uma “gripezinha”. E, no mês seguinte, questionado sobre o crescente número de mortos, ele respondeu simplesmente: “Não sou coveiro” — um comentário do qual ele se arrependeu posteriormente.
Bolsonaro também foi cético em relação às vacinas. Ele resistiu às ofertas de compra de doses para a população e se recusou a receber o inoculante. Desafiando suas próprias autoridades de saúde, ele promoveu tratamentos sem comprovação, como a hidroxicloroquina.
Por fim, as vacinas ficaram disponíveis. Mas muitos especialistas acreditam que milhares de vidas poderiam ter sido salvas, se o governo tivesse adotado medidas de distanciamento social e iniciado a imunização mais cedo.
Ao todo, mais de 700 mil brasileiros morreram de covid-19 entre 2020 e março de 2023.
A nêmesis do presidente
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Mais do que qualquer partido de oposição, o maior adversário de Bolsonaro durante seu mandato foi o Supremo Tribunal Federal.
O STF derrubou suas tentativas de bloqueio do distanciamento social e uso de máscaras durante a pandemia e também rejeitou políticas que teriam facilitado a compra de armas de fogo pelos cidadãos.
Um dos juízes do STF se tornou sua nêmesis. Alexandre de Moraes, professor de Direito e promotor público de carreira, trabalhou para governos conservadores em São Paulo, até ser nomeado para a Corte pelo ex-presidente Michel Temer.
Em 2020, Moraes foi nomeado para liderar o inquérito das fake news. O processo se desdobraria em outras ações, uma delas voltada para ameaças contra a democracia por apoiadores de Bolsonaro. Todos os processos ficaram sob a supervisão de Alexandre de Moraes.
Esta concentração de poder passou a gerar críticas, não só de pessoas leais a Bolsonaro, mas também de alguns advogados e políticos de centro. Mas o papel de Moraes era garantido por lei e a maioria das suas decisões foi mantida pelos demais juízes do STF.
Para certos analistas e comentaristas, confiar esta tarefa a ele foi considerada a única forma de salvaguardar a democracia brasileira.
Mas a insatisfação de Bolsonaro só cresceu. E, muitas vezes, ele declarou que não cumpriria com as decisões do tribunal.
Nas manifestações em massa ocorridas em Brasília e em São Paulo em setembro de 2021, ele subiu o tom dos ataques, chamando Moraes de “canalha”.
O então presidente também declarou que só deixaria o cargo “preso, morto ou com vitória”, destacando: “Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso.”
O discurso foi considerado uma ameaça direta às instituições democráticas brasileiras.
Conspiração e controvérsias eleitorais
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Lula saiu da prisão em novembro de 2019 e todas as acusações contra ele foram canceladas pelo STF.
Em 2021, ele foi liberado para concorrer à eleição presidencial de outubro de 2022, em enfrentamento direto com o então presidente.
Bolsonaro e seus aliados começaram uma campanha intensa, alegando — sem provas — que as urnas eletrônicas poderiam ser hackeadas. O então presidente defendia que Lula só poderia vencê-lo fraudando as eleições.
De forma geral, sua campanha foi considerada um esforço para estabelecer as bases para contestar qualquer resultado que o contradissesse.
Bolsonaro insistiu no uso exclusivo de cédulas de papel para a eleição e sugeriu que rejeitaria qualquer resultado sem elas. As autoridades eleitorais recusaram a proposta.
Houve novas controvérsias durante a votação. No dia do segundo turno, entre Bolsonaro e Lula, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), sob o governo Bolsonaro, bloqueou estradas em regiões de forte apoio a Lula.
O governo afirmou que o objetivo era evitar fraudes, mas a ação foi considerada uma tentativa de impedir que os apoiadores de Lula chegassem aos locais de votação.
Alexandre de Moraes foi quem ordenou a suspensão dos bloqueios e ameaçou prender o então diretor da PRF, Silvinei Vasques, se os bloqueios continuassem.
Por fim, como previsto pela maioria das pesquisas, Lula venceu — mas por uma margem muito pequena, de menos de dois pontos percentuais.
Obstinação transformada em violência
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Nos dias que se seguiram à eleição, Bolsonaro permaneceu em silêncio e fora da visão do público. Quando, finalmente, ele falou, foi apenas brevemente.
Ele não reconheceu a derrota (algo que ele nunca faria), mas autorizou o início da transição de governo.
Paralelamente, instigados pelo presidente, seus apoiadores usaram caminhões para bloquear estradas pelo Brasil. Centenas de pessoas leais a Bolsonaro acamparam no lado de fora de quartéis do Exército, exigindo a anulação das eleições e a intervenção das Forças Armadas, impedindo a posse de Lula.
Investigações posteriores demonstraram que, durante aquele período, Bolsonaro se reuniu com líderes militares, para discutir a imposição do estado de emergência no país, revogando o resultado das eleições.
O plano não foi adiante porque dois dos três chefes militares se recusaram a fazer parte, segundo suas declarações sob juramento.
Bolsonaro nega qualquer conhecimento dos planos. Ele defende ter discutido apenas medidas constitucionais com os chefes militares. Mas a legislação brasileira não permite a declaração de estado de emergência para anular uma eleição.
Nos últimos dias de 2022, quando ainda era presidente, Bolsonaro voou para a Flórida, nos Estados Unidos. Ele não voltou para comparecer à posse de Lula, em 1° de janeiro de 2023, quebrando a tradição de transmissão da faixa presidencial pelo presidente que sai para o seu sucessor.
No dia 8 de janeiro, o Brasil presenciou algo sem precedentes. Milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram o Congresso Nacional, o STF e o Palácio do Planalto, em Brasília. Parecia uma versão tropical do ataque ao Capitólio, nos Estados Unidos.
Lula não estava no Planalto e as forças de segurança controlaram o tumulto antes do final do dia.
Bolsonaro, ainda nos Estados Unidos, negou seu envolvimento. Mas a maioria dos juízes do STF considerou o ataque como parte de um plano maior, para depor o presidente Lula.
Fim da linha… por enquanto
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Bolsonaro acabou voltando ao Brasil e tratou de reagrupar seus aliados. Seu objetivo era não só a corrida presidencial de 2026, mas também ocupar outras esferas de poder.
Nas eleições municipais de 2024, seu partido ganhou mais de 500 prefeituras em todo o Brasil.
Paralelamente, avançavam as investigações contra ele, conduzidas pela Polícia Federal, sob supervisão de Moraes. Até que, em abril de 2025, o STF agendou o julgamento.
Alegando que a ação judicial era motivada por perseguição política, o deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do ex-presidente, se mudou para os Estados Unidos, para defender medidas contra o Brasil junto ao novo governo Donald Trump e seu movimento Make America Great Again (“Tornar a América Grande Novamente”, em português).
Em julho, Trump impôs tarifas de importação de 50% sobre os produtos brasileiros, afirmando que Bolsonaro era vítima de uma caça às bruxas.
Pouco tempo depois, foi dado início a uma investigação sobre Eduardo e Jair Bolsonaro, por interferência no processo judicial. O motivo foi sua aproximação com o governo americano.
Em agosto, Bolsonaro foi colocado em prisão domiciliar.
Por fim, o ex-presidente foi condenado pelo STF por todas as cinco acusações que recaíam sobre ele. Elas incluem o planejamento de golpe de Estado e liderança de organização criminosa.
Agora, ele está impedido de concorrer a qualquer cargo público até o ano 2060.
Mas o veredito pode não ser o fim de Bolsonaro.
Mesmo antes do fim do julgamento, seus aliados no Congresso começaram a negociar uma proposta de anistia pelos seus crimes, que poderá ser votada nas próximas semanas. E, paralelamente, políticos que buscam o apoio de Bolsonaro para suas candidaturas presidenciais já prometem perdoar o ex-presidente, se saírem vitoriosos.
Um alto funcionário do governo Lula, falando em condição de anonimato, alertou que a eventual anistia aprovada pelo Congresso seria declarada inconstitucional pelo STF.
Este cenário pode deflagrar uma crise, se os aliados de Bolsonaro conseguirem eleger um grande número de senadores e deputados nas próximas eleições. Eles poderão até tentar aprovar o impeachment de juízes do STF.
Como disse um dos advogados durante o julgamento, “todos sabem que qualquer decisão será reavaliada. Nada será definitivo.”
A declaração parece um presságio. E uma definição da história recente do Brasil.