Dois gestos obscenos, dois dedos do meio e duas medidas. Dois agentes públicos em cargos de alta responsabilidade, mas reações institucionais profundamente distintas. Enquanto o então ministro da Saúde na gestão de Jair Bolsonaro (PL) Marcelo Queiroga foi alvo de apuração na Comissão de Ética Pública da Presidência da República após ter mostrado o dedo do meio a manifestantes em Nova York, em setembro de 2021, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), até agora não sofreu qualquer consequência, não pediu desculpas públicas nem houve movimentação institucional pela atitude idêntica, cometida no dia 30 de julho de 2025.
O dedo em riste considerado obsceno de Moraes foi registrado na Neo Química Arena, em São Paulo, enquanto ele assistia a um jogo pela Copa do Brasil entre o time pelo qual torce, o Corinthians, contra seu principal rival, o Palmeiras. O momento foi flagrado por um repórter fotográfico do jornal O Estado de S. Paulo e não há detalhes para quem Moraes reagiu, apesar de conjunturas apontarem que ele teria feito a manifestação a torcedores após receber críticas. O ato foi registrado no mesmo dia em que foram aplicadas sanções pelos Estados Unidos contra o ministro com base na Lei Magnitsky.
O constitucionalista André Marsiglia destaca que o gesto do ministro Alexandre de Moraes é mais grave do que o de um ministro de Estado, justamente por sua posição institucional. Segundo ele, Moraes não está sujeito apenas à Lei Orgânica da Magistratura, que veda comportamentos incompatíveis com a função de juiz, mesmo em ambiente informal, mas também à Lei do Impeachment.
“O artigo 39 exige decoro por parte de ministros do Supremo, e trata a falta de decoro como possível crime de responsabilidade, o que pode abrir caminho para um processo de impeachment”, explica Marsiglia. Para o jurista, a conduta de Moraes não pode ser relativizada apenas por sua condição de alvo de sanções internacionais: “É uma situação que exige mais rigor, não menos”.
Institucionalmente, não há manifestações sobre possíveis apurações em relação à conduta ética de Moraes, mesmo após intensa repercussão nacional e internacional.
Para o advogado e comentarista político Luiz Augusto Módolo, a atitude revela um problema maior: a crescente exposição de magistrados do STF e o protagonismo que assumiram no cenário político. “Um ministro de Estado até pode se irritar — está no jogo político. Mas um ministro do STF nem sequer deveria estar nesse jogo, muito menos nesse nível de exposição pública”, afirmou.
Segundo ele, os integrantes da Corte deveriam preservar sua discrição institucional e, em caso de cometerem atos como o registrado durante a semana, agirem rapidamente. “Hoje eles têm o poder de calar políticos, derrubar mandatos, decretar prisões. Decidem desde crimes menores até supostos golpes de Estado. Tornaram-se figuras centrais, isso cobra um preço, mas sem consequências quando [Moraes] age com atos obscenos”
O especialista destaca que o que se viu foi uma cena que jamais deveria ter ocorrido. “Moraes quis demonstrar “indiferença olímpica” à sanção da Lei Magnitsky, mas sua reação revelou justamente o contrário: ele sentiu. E, agora, essa imagem entrou para a história como um símbolo do desequilíbrio entre função e comportamento”.
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A investigação contra Queiroga contrasta com o silêncio em favor de Moraes
Na ocasião envolvendo Queiroga, a Comissão de Ética agiu com rapidez. A atitude do ministro foi denunciada pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) com um ofício exigindo explicações formais ao ministro e ao então chanceler Carlos França, que também havia feito gestos considerados inapropriados.
O ex-ministro da Saúde integrava a comitiva presidencial de Jair Bolsonaro que tinha ido a Nova York, nos Estados Unidos, para a Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2021. O ônibus em que o grupo estava foi cercado por alguns manifestantes brasileiros, que proferiram insultos ao ex-presidente e aos demais. Queiroga reagiu com gestos obscenos em direção aos participantes do protesto.
A Comissão de Ética fundamentou sua atuação com base no Código de Conduta da Alta Administração Federal e deixou claro que a postura de altos representantes da República deve se pautar por decoro e respeito às instituições, mesmo diante de provocações. Queiroga, por sua vez, justificou à época que era “humano” e que reações emocionais são falhas naturais, o que não impediu que o caso seguisse sob apuração.
Já em julho de 2025, o gesto obsceno de Moraes — que também mostrou o dedo do meio — aconteceu em um contexto igualmente público: um estádio de futebol lotado durante partida transmitida nas redes sociais, na TV e repercutida por toda a imprensa.
Diferente de Queiroga, que não ostentava função judicial, Moraes ocupa um dos cargos mais elevados do Poder Judiciário brasileiro e é relator de processos sensíveis no STF, incluindo ações contra ex-autoridades acusadas de suposta tentativa de golpe de Estado, um dos motivos pelos quais os EUA aplicaram as sanções contra ele. O presidente Donald Trump citou nominalmente a perseguição política contra Bolsonaro e descreveu como uma “caça às bruxas” o que o ex-presidente vem enfrentando.
“Até o momento, nenhuma providência foi tomada pelo STF, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ou por qualquer instância de controle interno sobre conduta de magistrados”, completa Módolo.
Especialistas avaliam que a diferença de tratamento é gritante. “No caso de Queiroga, o gesto foi considerado potencial violação ética de imediato. No de Moraes, mesmo após críticas públicas de parlamentares, juristas e cidadãos, a atitude segue impune, como se fosse um ato irrelevante vindo de um ministro de Estado da mais alta Corte do país”, afirma a doutora em Direito Público e Constitucional Clarisse Andrade.
Ela lembra que o silêncio institucional parece manifestar uma lógica de blindagem que destoa das exigências republicanas de isonomia e accountability, ou a transparência com responsabilidade. “Aparentemente, o mesmo gesto, diante de públicos distintos, é avaliado com pesos diversos conforme o cargo, o momento político e, sobretudo, a conveniência institucional”, afirma André Marsiglia.
O pastor Silas Malafaia usou a rede social X para criticar Moraes pelo ocorrido. Ele repostou a imagem do ministro com o gesto obsceno, chamando-o de “Alexandre de Moraes, o pequeno”, um contraponto a Alexandre, o Grande – o rei da Macedônia que conquistou vastos territórios entre a Grécia e a Índia e criou um dos maiores impérios da história no século quarto antes de Cristo.
Falta de reação a gesto obsceno de Moraes tem relação com a defesa da autoimagem do STF
A falta de reação também gera críticas à postura do STF em relação à sua própria imagem. Para juristas, ao manter o silêncio, a Corte reforça percepções de seletividade, alimentando a narrativa de que há uma “elite institucional” protegida contra qualquer forma de responsabilização.
“Se um ministro da Suprema Corte, recém-sancionado por um governo estrangeiro, pode reagir de forma agressiva a provocações públicas sem que se abra nem sequer uma apuração preliminar, que tipo de exemplo é transmitido ao conjunto da magistratura e aos demais poderes da República?”, questiona Clarisse Andrade.
A situação é ainda mais delicada quando se considera o momento institucional vivido pelo país. As sanções impostas pelos EUA a Moraes já causaram repercussão diplomática e jurídica e o gesto obsceno se tornou símbolo de uma reação institucional personalista.
A especialista avalia que é como se o Judiciário fosse um território onde não se aplica o mesmo rigor exigido aos demais agentes públicos. “O Supremo emitiu nota protocolar em defesa de Moraes, mas não emitiu nota criticando o gesto obsceno ou qualquer tipo de crítica à postura do ministro fora dos autos”, completa.
Analistas avaliam que o caso de Queiroga permanece como referência de resposta ética célere, ainda que tenha sido posteriormente arquivado, como frequentemente ocorre nesse tipo de situação. “O relevante, no entanto, é que houve reação, houve investigação, houve respeito ao rito mínimo da responsabilização pública. Já no episódio envolvendo Moraes, o que há é apenas silêncio e memes”, destaca Marsiglia. Para analistas, a diferença não é jurídica, mas política.
Fabio Wajngarten, que foi assessor e advogado de Bolsonaro, disse que se o gesto tivesse sido feito pelo ex-presidente ganharia ampla repercussão e incansáveis notas de repúdio. “Se o presidente [Bolsonaro] fizesse um gesto obsceno ou falasse um palavrão teríamos sete capas [de jornais e revistas]; 26 homepages; três plantões extraordinários; 46 notas de repúdio; 19 associações pedindo Impeachment”, criticou no X.
O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) disse que essa não é nem deve ser a postura de um ministro da mais alta Corte do país e fez questão de usar o termo “sancionado” para se referir a Alexandre de Moraes. “Essa não é a postura de um ministro, sancionado”, descreveu ao repostar a imagem com o gesto obsceno.
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Casos de Moraes e Queiroga mostram seletividade na aplicação de códigos de conduta pública
A seletividade na aplicação de códigos de conduta pública corrói a legitimidade das instituições, na avaliação de especialistas. “Quando atos idênticos geram respostas opostas dependendo de quem os comete, a ideia de República se fragiliza. Em tempos de polarização, desconfiança nas instituições e enfraquecimento da ética pública, a omissão diante de gestos simbólicos representa muito mais do que um erro de avaliação: representa o risco da impunidade institucionalizada”, reforça o criminalista Márcio Nunes.
Nunes alerta ser legítimo que ministros da Suprema Corte, assim como qualquer cidadão, possam se defender de supostas ofensas e agressões, mas é igualmente legítimo e necessário que estejam sujeitos aos mesmos padrões de conduta, de transparência e de responsabilização aplicáveis a qualquer outro agente público. “O exemplo começa pelo topo e, neste caso, o topo se calou e o ministro nem sequer pediu desculpas”.