Crédito, BBC/Phil Pendlebury
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- Author, Nawal Al-Maghafi e Jasmin Dyer
- Role, De Porto Príncipe (Haiti) para o Serviço Mundial da BBC
Importante: esta reportagem contém relatos de estupro e outros tipos de violência que podem ser perturbadores para alguns leitores.
Helene tinha 17 anos de idade quando uma gangue atacou o bairro onde ela mora na capital do Haiti, Porto Príncipe.
Ela faz carinho na filha, que dorme no seu colo, e descreve como homens armados a sequestraram enquanto ela tentava fugir. Eles a mantiveram em cativeiro por mais de dois meses.
“Eles me estupravam e me batiam todos os dias”, conta Helene. “Vários homens diferentes. Nem mesmo sei seus nomes, eles usavam máscaras.”
“Algumas das coisas que eles me fizeram são dolorosas demais para contar para você.” O nome da jovem foi alterado para proteger sua identidade.
“Fiquei grávida e eles me diziam continuamente que eu precisava abortar. Respondi ‘não’. Este bebê pode ser o único que eu venha a ter.”
Helene conseguiu escapar quando a gangue perdeu uma luta para manter seu território. Agora com 19 anos, ela passou o ano passado criando sua filha em um abrigo secreto, localizado em um subúrbio da capital.
Crédito, BBC/Phil Pendlebury
No abrigo seguro, moram pelo menos 30 meninas e mulheres jovens. Elas dormem em beliches, em quartos pintados com tons coloridos.
Helene é a sobrevivente de estupro com mais idade. A mais jovem tem apenas 12 anos.
Brincando e dançando na sacada, em um vestido azul de bolinhas, ela parece muito mais jovem do que na realidade. Ela sofreu desnutrição no passado e os funcionários contam que ela foi estuprada diversas vezes.
Os estupros e outros tipos de violência sexual dispararam no Haiti, com a expansão do controle das gangues sobre Porto Príncipe e além da capital.
A ong Médicos Sem Fronteiras (MSF) administra uma clínica no centro de Porto Príncipe para mulheres que sofreram abusos sexuais. Dados fornecidos pela organização com exclusividade para a BBC indicam que o número de jovens atendidas quase triplicou desde 2021.
As gangues são conhecidas por invadirem bairros e matarem dezenas de pessoas. O MSF afirma que o estupro de mulheres e meninas por diversas gangues são parte frequente dos ataques em larga escala.
Relatos de sobreviventes deixam claro que as gangues vêm utilizando o estupro para aterrorizar e subjugar comunidades inteiras.
A BBC questionou líderes de gangues sobre os relatos de mortes e estupros.
Um deles respondeu que os membros das gangues “fazem coisas que não deveriam fazer”. Outro afirmou que eles têm o “dever” de combater o Estado e, “quando estamos combatendo, somos possuídos, deixamos de ser humanos”.
“As pacientes começaram a contar histórias muito, muito difíceis, desde 2021”, conta a chefe da missão do MSF no Haiti, Diana Manilla Arroyo.
“As sobreviventes falam em cerca de dois, quatro, sete ou até 20 agressores”, ela conta. Manilla Arroyo destaca que, agora, mais mulheres relatam terem sido ameaçadas com armas ou deixadas inconscientes.
As mulheres também relatam com mais frequência que seus agressores eram menores de 18 anos de idade, segundo ela.
Em um centro de recepção em outra parte da cidade, quatro mulheres descrevem terem sido atacadas em frente aos seus filhos e maridos. A idade delas varia de pouco menos de 30 até 70 anos de idade.
“Nosso bairro foi atacado”, conta uma mulher. “Eu voltei para casa e vi que minha mãe, meu pai e minha irmã, todos foram assassinados. Eles os mataram e incendiaram a casa.”
Depois de fazer uma busca na casa devastada, ela estava pronta para sair do bairro quando encontrou membros da gangue.
“Eles me estupraram.”, ela conta. “Eu estava com minha filha de seis anos de idade e eles também a estupraram. Depois, eles mataram meu irmão mais novo na nossa frente.”
“Sempre que minha filha olha para mim, ela está triste e chorando.”
Crédito, BBC/Phil Pendlebury
A outra mulher relata ataques em um padrão parecido: assassinato, estupro e incêndio criminoso.
A violência sexual é apenas um dos elementos da crise que toma conta do Haiti.
Agências da ONU afirmam que 1,3 milhão de pessoas — mais de 10% da população do país — fugiram de suas casas e metade da população enfrenta fome aguda.
O Haiti não tem nenhum líder eleito desde o assassinato de Moïse. Um Conselho Presidencial de Transição e diversos primeiros-ministros nomeados por ele receberam a tarefa de organizar o país e convocar eleições.
Mas gangues rivais formaram uma aliança e voltaram suas armas contra o Estado haitiano, não mais entre si. E, desde a última visita da BBC em dezembro de 2024, a situação se deteriorou ainda mais.
Outras centenas de milhares de pessoas foram deslocadas. Mais de 4 mil indivíduos foram mortos no primeiro semestre de 2025, em comparação com 5,4 mil em todo o ano de 2024, segundo as Nações Unidas.
Crédito, Guerinault Louis/Anadolu/Getty Images
Estima-se que as gangues tenham aumentado seu controle. Eles passaram a dominar 85% para 90% da capital.
Esses grupos se apoderaram de bairros importantes, rotas comerciais e infraestrutura pública, apesar dos esforços de uma força de segurança liderada pelo Quênia e apoiada pela ONU.
A BBC se juntou à força internacional durante a patrulha de uma área controlada por gangues. Em questão de minutos, um dos pneus do veículo blindado onde a equipe de reportagem estava recebeu um tiro, o que deu fim à operação.
Os membros da força de segurança raramente saem dos veículos blindados. Especialistas afirmam que as gangues continuam a adquirir armas poderosas para continuar no controle.
Nos últimos meses, as autoridades haitianas contrataram mercenários para ajudar a recuperar o poder.
Uma fonte das forças de segurança do Haiti declarou à BBC que companhias militares privadas, incluindo uma dos Estados Unidos, operam no campo, e usaram drones para atacar os líderes das gangues.
Essa fonte nos mostrou imagens de drones que, segundo ele, são do líder de uma gangue, Ti Lapli, atingido por uma explosão.
A fonte afirma que Ti Lapli ficou em estado grave, mas a BBC não conseguiu confirmar a informação com outras fontes.
Crédito, BBC/Phil Pendlebury
Em toda a capital, o medo das gangues permanece.
Em muitos bairros, grupos de vigilância cuidam da segurança com as próprias mãos, o que aumenta ainda mais o número de jovens armados nas ruas.
“Não vamos deixar que eles [as gangues] venham aqui nos matar e roubar tudo o que temos, queimar carros, queimar casas, matar crianças”, diz um homem que se identifica como “Mike”.
Ele conta que integra um grupo em uma agitada área comercial chamada Croix-des-Près, perto do território controlado pelas gangues.
Tiros soam à distância, mas ninguém toma conhecimento. Aqui, as pessoas estão acostumadas a esses barulhos.
Mike afirma que as gangues pagam para recrutar jovens e criam pontos de controle, onde exigem dinheiro dos moradores que passam pelo local.
“É claro que todos têm medo”, ele conta. “Sentimos que estamos sozinhos, na tentativa de proteger as mulheres e as crianças.”
“As gangues continuam a se expandir e sabemos que a nossa região poderá ser a próxima.”
Crédito, BBC/Phil Pendlebury
As agências humanitárias afirmam que a situação no Haiti está se deteriorando e que as mulheres estão entre os grupos mais atingidos. Muitas delas enfrentam o duplo trauma da violência sexual e do deslocamento.
A diretora regional do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA), Lola Castro, afirma que Porto Príncipe “é o pior lugar do mundo para ser mulher”.
Ela destaca que, ali, as mulheres também estão sujeitas ao impacto dos cortes dos programas de ajuda humanitária.
O Haiti foi, por muito tempo, um dos maiores destinatários de fundos da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid, na sigla em inglês). M
Quando a reportagem da BBC visitou o Haiti em junho, Castro afirmou que o PMA estava distribuindo seus últimos estoques de auxílio alimentar financiados pelos Estados Unidos.
Ela explica que o fornecimento de alimentos protege as mulheres, ao evitar que elas precisem sair às ruas para mendigar ou procurar comida.
Os trabalhadores humanitários também têm medo que os cortes possam em breve afetar o apoio às vítimas de violência, em lugares como o abrigo secreto onde vive Helene.
E Manila Arroyo, de MSF, destaca que o financiamento de métodos contraceptivos também foi reduzido.
“Muitas das nossas pacientes já têm filhos”, ela conta. “Muitas delas têm menos de 18 anos e são mães. O risco de gravidez representa muitos, muitos novos desafios para elas.”
Helene e outras mulheres no abrigo costumam se sentar e conversar entre si em uma sacada com vista para Porto Príncipe. Mas muitas delas têm muito medo de deixar a segurança daqueles muros.
Ela não sabe como irá sustentar a filha quando ela crescer.
“Sempre sonhei em ir à escola, para aprender e me tornar alguém”, lamenta ela.
“Eu sempre soube que teria filhos, mas não com esta idade.”