Mesmo em meio a um esforço para tentar evitar que sua estrutura seja usada para perseguir dissidentes políticos, a Interpol, o órgão internacional que integra polícias de 196 países, pode incluir a deputada Carla Zambelli (PL-SP) em sua lista vermelha de procurados. Analistas ouvidos pela reportagem afirmam que as acusações contra a parlamentar feitas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil são mais “concretas” do que outras solicitações feitas pela Corte à instituição, como os pedidos de inclusão na lista dos jornalistas Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio.
Segundo uma fonte ligada à Interpol, o nome da deputada seria incluído oficialmente na lista em breve. Até a publicação dessa reportagem, o nome dela não constava na lista pública de procurados divulgada pela instituição, mas pode estar em bancos de dados internos do órgão.
A Interpol por vezes é retratada no cinema como uma espécie versão internacional do FBI (polícia federal americana), capaz de fazer grandes investigações e desbaratar redes criminosas. Mas a realidade da instituição, baseada na França, está mais relacionada a integrar bancos de dados policiais e emitir mandatos de prisão que são executados por polícias nacionais quando os suspeitos entram em seus territórios.
O órgão faz treinamento de policiais e ajuda em investigações específicas, mas suas principais ferramentas são 19 bancos de dados criminais integrados e uma ferramenta de comunicação chamada I-24/7, responsável pela difusão dos chamados “avisos vermelhos” ou “lista vermelha”.
Em outras palavras, a Interpol funciona como um grande quadro de avisos das forças policiais e consegue monitorar e deter suspeitos quando eles cruzam fronteiras ou são abordados por policiais.
Esse sistema foi fortalecido a partir dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Com apoio dos Estados Unidos o sistema de lista vermelha foi melhorado e órgãos poliais de mais países foram agregados à Interpol em um esforço de combate ao terrorismo. Os governos associados podiam colocar suspeitos na lista vermelha automaticamente.
O problema é que ditaduras e governos autoritários como Rússia, China e Turquia passaram a usar o sistema para deter e repatriar asilados e dissidentes políticos e não criminosos.
Um dos primeiros escândalos foi a prisão do ativista Benny Wenda, que obteve asilo político na Grã-Bretanha por participar de um movimento de independência de uma região separatista da Indonésia.
Mas a lista se transformou em um tipo de arma nas mãos da Rússia. O caso mais notório foi o do empresário William Browder, que entrou na lista da Interpol por ser perseguido pelo Kremlin por denunciar abusos de direitos humanos que resultaram em sanções internacionais contra autoridades da Rússia.
Após vários escândalos e abusos, em 2014, a Interpol criou um conselho para revisar os mandados de prisão emitidos pelos governos antes deles serem incluídos na lista vermelha. Hoje, a responsabilidade por manter a lista livre de perseguições políticas é o brasileiro Valdecy Urquiza, ex-delegado da Polícia Federal que foi eleito secretário-geral da Interpol.
Foi esse sistema que barrou, por exemplo, a inclusão dos nomes de Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio a pedido do STF em anos recentes, segundo apurou a reportagem. A Interpol vem fazendo essa triagem há anos, mas nem sempre explica oficialmente os motivos específicos de inclusão ou exclusão de nomes da lista vermelha.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo opinam que os casos de Allan e Eustáquio envolvem liberdade de expressão e perseguição ideológica, o que fere o estatuto da Interpol. Já o caso de Zambelli tende a não se encaixar na mesma categoria, pois sua prisão preventiva foi decretada com base em critérios objetivos do Código de Processo Penal.
Comentando a situação da deputada, o advogado criminalista, e presidente nacional da Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM), James Walker Júnior, explicou que a condenação de Zambelli, seguida de sua saída do país, é um fator que pode colocá-la na lista vermelha.
“Ela se evadiu do distrito da culpa, ou seja, do âmbito da jurisdição onde ela poderia ser, eventualmente, presa e iniciado o cumprimento da execução da pena. Com base nessas circunstâncias, o Judiciário determinou a prisão preventiva e acionou a Interpol”, explicou Walker.
Na quarta-feira (4), Moraes determinou a prisão preventiva de Zambelli após ela anunciar a saída do Brasil e a licença do mandato. A parlamentar foi condenada pela Primeira Turma do STF por 10 anos e 8 meses de prisão por suposta invasão ao sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ocorrida em 2023. Sua defesa entrou com recurso, que foi negado pela Primeira Turma do STF.
Segundo a acusação, o hacker Walter Delgatti Neto inseriu no sistema do CNJ um mandado falso de prisão contra Moraes a mando de Zambelli com o objetivo de desacreditar o Judiciário e gerar instabilidade institucional. Os dois foram condenados pelos crimes de invasão de dispositivo informático e falsidade ideológica.
Interpol rejeitou pedidos por viés político e falta de base jurídica
A recusa da Interpol em incluir os nomes de Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio em sua lista vermelha foi motivada por uma combinação de fatores jurídicos e políticos, segundo especialistas. Além do entendimento de que os casos envolvem perseguição ideológica, a existência de pedidos de asilo por parte dos investigados também foi determinante para barrar a inclusão de seus nomes na lista vermelha.
Para o advogado constitucionalista Fábio Tavares, os pedidos brasileiros foram vistos como excessivamente politizados. “Os pedidos de inclusão desses nomes foram percebidos pela Interpol como motivados mais por manifestações políticas e ideológicas do que por crimes comuns”, afirmou.
Ele destaca que os atos atribuídos aos dois — como críticas ao STF e disseminação de desinformação — não têm equivalência penal clara em muitos países. “Críticas ao STF, disseminação de notícias falsas ou ataques verbais, por mais graves que sejam sob a ótica interna, não são tratados como crimes em muitos países democráticos”, explicou.
O doutor em Direito pela USP, Alessandro Chiarottino, destaca a solicitação de asilo político.
“Nos casos de Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio, a Interpol entendeu que não havia informações suficientes e, além disso, os dois já haviam pedido asilo, o que ‘bloqueia’ a ação da Interpol”, afirmou. Segundo ele, o pedido de refúgio ou asilo internacional impede a emissão de alertas vermelhos, pois a organização evita interferir em processos que envolvam proteção humanitária.
Cidadania italiana pode blindar Zambelli da extradição
A Itália, assim como muitos países europeus, não extradita os seus próprios cidadãos, a não ser que sejam casos excepcionais previstos em tratados internacionais específicos. A Constituição italiana veda a extradição de cidadãos italianos, inclusive para países com os quais mantém tratados, como é o caso do Brasil, que tem tratado bilateral de extradição com a Itália de 1989.
“Se a Carla Zambelli estiver na Itália e apresentar ou comprovar sua cidadania italiana, dificilmente poderá ser extraditada para o Brasil. Este é o cenário mais provável, caso ela permaneça na Itália e atue juridicamente para garantir sua proteção como cidadã italiana”, afirma o doutor em Direito Internacional, Luiz Augusto Módolo.
A deportação é uma medida administrativa aplicada a estrangeiros em situação irregular. De acordo com o advogado, se Zambelli estiver na Itália sem regularizar sua residência como cidadã italiana ou for considerada ameaça à ordem pública, o Estado italiano poderia cogitar uma deportação, mas essa possibilidade é muito remota, especialmente em se tratando de uma pessoa com cidadania europeia.
“Se a Carla Zambelli decidir não permanecer na Itália e viajar a outro país com o qual o Brasil mantenha tratado de extradição e que admita a extradição de nacionais ou de cidadãos com dupla nacionalidade, ela poderá ser detida e extraditada com base na Difusão Vermelha da Interpol e no pedido formal de extradição que o Brasil deve apresentar”, segundo o procurador-jurídico da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim) Márcio Berti.
Como exemplo, o advogado disse que, caso ela retorne aos Estados Unidos, onde esteve antes de seguir para a Europa, existe um tratado de extradição e a possibilidade concreta de detenção e remoção, dependendo do entendimento da Justiça norte-americana sobre o caso.
“Há um cenário ainda para o cumprimento da pena na Itália. Nesse caso o Brasil apresentaria um pedido de aplicação da pena na Itália, com base em convenções internacionais de cooperação penal, solicitando que ela cumpra a pena imposta pelo STF em território italiano. Este procedimento seria muito complexo e depende da legislação italiana reconhecer a decisão judicial brasileira e considerá-la compatível com seus princípios constitucionais e legais”, alerta o advogado.
Embora a Constituição italiana proteja seus cidadãos da extradição, há exceções previstas em acordos internacionais. Um caso emblemático foi o do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, extraditado com base na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, da qual Brasil e Itália são signatários.
Por outro lado, o caso Pizzolato é visto como uma exceção. Assim como o Brasil raramente extradita seus próprios cidadãos, a Itália também tende a adotar essa postura. A decisão final cabe ao governo italiano, que pode optar por defender ou extraditar o cidadão, conforme as circunstâncias do caso.