Crédito, Getty Images
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- Author, Myles Burke
- Role, BBC Culture
No dia 14 de julho de 1960 (65 anos atrás), uma jovem inglesa autodidata, sem formação nem conhecimento científico formal, desembarcou na Reserva Ambiental de Gombe Stream, na Tanzânia. Ela começava o que viria a se tornar um estudo pioneiro dos chimpanzés selvagens.
Com apenas 26 anos de idade, Jane Goodall já sonhava há muito tempo em estudar e viver com os animais.
“Aparentemente, desde que eu tinha um e meio ou dois anos de idade, eu costumava estudar insetos, qualquer coisa, e isso gradualmente evoluiu, se desenvolveu e cresceu”, contou ela em 1986 ao apresentador de TV Terry Wogan (1938-2016), no seu programa de entrevistas apresentado pela BBC.
“Mais tarde, eu li livros como A História do Doutor Dolittle e Tarzan, e a África passou a ser meu objetivo.”
Crédito, Hugo van Lawick
Quando saiu da escola, Goodall fez um curso de secretariado enquanto trabalhava como garçonete e assistente de produção de filmes, para financiar sua ambição da infância.
Em 1957, ela havia finalmente economizado dinheiro suficiente para viajar e ver uma amiga em Nairóbi, no Quênia.
Durante sua estada, ela conseguiu encontrar o renomado paleoantropólogo queniano-britânico Louis Leakey (1903-1972). Sua esperança era apenas de conversar com ele sobre os animais.
Mas Leakey ficou muito impressionado com a calma determinação de Goodall e seu extenso conhecimento da vida selvagem africana, acumulado como autodidata. E, como sua secretária havia se demitido recentemente, o professor ofereceu a ela um emprego como sua assistente junto ao Museu de História Natural.
Leakey passaria, então, a ser mentor de Goodall.
“Foi ele que me disse, ‘bem, estou procurando alguém para ir estudar chimpanzés, pois conhecer o comportamento deles pode aumentar nossa compreensão sobre o comportamento dos primeiros humanos”, contou ela a Wogan.
Leakey considerava que a falta de formação acadêmica da jovem seria uma vantagem, não um obstáculo. Ele acreditava que as observações de Goodall não seriam limitadas por teorias científicas pré-existentes.
Goodall não estaria sozinha na sua viagem à reserva de Gombe. Para cumprir com as regulamentações de segurança coloniais da época, sua mãe Vanne viajou como sua acompanhante.
“Inicialmente, eu não tinha autorização para ficar sozinha”, contou ela à BBC.
“O governo britânico da época disse ‘Não, é totalmente amoral uma jovem sair para a floresta’. Por isso, precisei escolher uma acompanhante e minha mãe ficou comigo por três meses.”
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Os primeiros meses foram difíceis. Goodall e sua mãe ficaram juntas em uma antiga tenda de acampamento do Exército, onde tiveram malária.
Mesmo quando Goodall já estava suficientemente recuperada para se aventurar pela reserva, ela só podia sair com um acompanhante local. E, muitas vezes, ao ouvirem o som dos passos se aproximando, os chimpanzés simplesmente desapareciam na vegetação rasteira.
Mas ela aprendeu as trilhas da floresta e começou a se movimentar pelo denso terreno. Foi quando “as autoridades concluíram, bem, que eu era louca e ficaria ok”, ela conta.
Depois que Goodall começou a acampar sozinha nos morros cobertos pela floresta, ela começou a observar os esquivos primatas com seus binóculos, a partir de um pico entre dois vales. Foi ali que Goodall começou a adotar uma abordagem de imersão não ortodoxa.
Todos os dias, ela se aproximava cada vez mais da área de alimentação dos chimpanzés. Sua esperança era poder se sentar entre os animais e estudá-los mais de perto no seu habitat natural.
Ferramentas e comunicação
“Eu vestia roupas das mesmas cores todos os dias e acho que o mais importante é que nunca forcei”, contou ela em 2014 ao programa de rádio Witness History, do Serviço Mundial da BBC.
“Nunca tentei chegar perto demais. Eu esperava perto de uma árvore frutífera, para onde eu sabia que os chimpanzés estavam vindo, e, quando eles saíam, eu não os seguia.”
“Não no início, porque eu achava que seria abusar da minha sorte. Por isso, eles acabaram aceitando gradualmente que eu não representava perigo”, relembrou ela.
Quando os chimpanzés perderam a desconfiança em relação a ela, Goodall conseguia se sentar por horas, para observar pacientemente o comportamento e o complexo sistema social da espécie, até então desconhecido.
Ela descobriu que os chimpanzés, na verdade, não são vegetarianos, como se pensava até então, mas onívoros. E que eles se comunicam entre si para caçar.
Goodall conseguiu testemunhar a proximidade dos laços familiares dos animais e como a individualidade de cada um deles influenciava o comportamento.
“Na sociedade dos chimpanzés, a fêmea pode acasalar com todos os machos ou ser levada e mantida por um deles”, contou ela a Wogan. “E os machos mantêm laços muito próximos.”
“Eles patrulham as fronteiras do território comunitário, mantêm os estranhos à distância, trazem novas fêmeas jovens para o grupo e todos eles agem como pais simpáticos, tolerantes, gentis e protetores para todos os bebês, dentro daquela comunidade.”
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Em vez de usar um sistema de numeração para seus animais, como ocorre tradicionalmente em projetos de pesquisa, Goodall deu nomes aos chimpanzés, reconhecendo a personalidade única de cada um deles.
Um dos machos recebeu o nome de David Greybeard (“Barba Cinza”, em inglês). E foi observando aquele animal que ela percebeu, pela primeira vez, que ele preparava e usava ferramentas — atividades que os cientistas da época consideravam exclusivas dos seres humanos.
A produção de ferramentas exige pensamento abstrato para conceber seu uso em situações futuras. Esta atividade, de fato, era considerada na época uma das características que definiam o que é ser humano.
“[Os chimpanzés] usam mais objetos diferentes como ferramentas do que qualquer outra criatura, exceto nós”, contou ela a Wogan. “Por exemplo, um pequeno galho. Eles podem retirar as folhas e modificá-lo, para se alimentar de cupins.”
“De um ramo longo, eles podem tirar a casca, se alimentar de uma formiga mordedora muito viciante e, depois, mastigá-la. Folhas são amassadas para beber água de um buraco pequeno que eles não conseguem alcançar com os lábios, ou para retirar sangue do seu corpo.”
“E armas: pedras que são lançadas, galhos usados para intimidação ou como tacos”, relembra ela.
Na época, esta era uma ideia revolucionária. Ela questionava anos de pensamento científico convencional.
Desde então, as pesquisas trouxeram evidências de uso de ferramentas em todo o reino animal, desde os polvos da Indonésia, que usam cascas de coco descartadas pelos seres humanos como proteção contra os predadores, até os corvos da Nova Caledônia, que dobram galhos e fios com os bicos para criar ganchos, que permitem que eles arranquem larvas das cascas das árvores.
Enquanto Goodall se sentava em silêncio observando os chimpanzés, ela começou a ver como os laços familiares e a comunicação não verbal deles eram similares aos seres humanos.
A compreensão dessa semelhança com os seres humanos levantou “novas questões sobre a forma como criamos nossos filhos no Ocidente”.
Ancestral comum
“Bem, se deixarmos uma criança chorando à noite, se a deixarmos por longas horas em um cercadinho, se a levarmos para uma creche onde há mudanças constantes de pessoas, podemos criar uma criança altamente inteligente.”
“Mas, pela nossa experiência com chimpanzés que passaram por dificuldades de criação, existe a sugestão de que aquela criança, quando chegar à idade adulta, pode ter dificuldade para criar relacionamentos próximos com os demais”, afirma ela.
“Eles podem ter dificuldade para lidar com situações estressantes. Isso é muito importante.”
Goodall reconheceu como as emoções e os comportamentos ritualizados dos chimpanzés podem ser muito parecidos com os nossos. E como seus impulsos violentos e destrutivos, como os nossos, podem gerar matanças brutais.
“Descobrimos depois dos 10 primeiros anos que, embora os chipanzés fossem muito parecidos conosco nos seus modos amigáveis, eles também podem se tornar muito agressivos, como nós”, explica ela.
“Descobrimos que, em certas situações, pode haver canibalismo e também uma interação entre comunidades que, de certa maneira, é uma forma primitiva de guerra humana.”
Incentivada por Leakey e mesmo sem ter cursado graduação, Jane Goodall começou um PhD em 1962, com base nas suas descobertas excepcionalmente detalhadas.
Naquele mesmo ano, a National Geographic Society enviou um fotógrafo e cineasta da vida selvagem, o holandês Hugo van Lawick (1937-2002), para documentar o trabalho dela.
O resultado foi o documentário Miss Goodall and the Wild Chimpanzees (“A Srta. Goodall e os Chimpanzés Selvagens”, de 1965). Narrado por Orson Welles (1915-1985), o filme ajudou a levar suas descobertas para o público.
Van Lawick se tornaria o primeiro marido de Goodall e, em 1967 (um ano depois de ganhar seu doutorado), ela deu à luz o filho do casal, Hugo, que eles apelidaram de Grub.
Seus pais construíram um abrigo de proteção para permitir que Goodall mantivesse o bebê em segurança, enquanto continuava seu trabalho de campo.
“Os chimpanzés são caçadores, exatamente como nós”, contou ela a Wogan. “Eles caçam mamíferos de porte médio de forma cooperativa.”
“Havia registros de chimpanzés caçando crianças humanas, da mesma forma que os seres humanos caçam chimpanzés. Por isso, quando era muito pequeno, antes que aprendesse a andar, ele [Hugo] ficava em uma espécie de varanda engaiolada e sempre precisávamos ter pessoas por perto.”
As pesquisas revolucionárias de Jane Goodall no setor da primatologia trouxeram evidências de que os seres humanos não estão separados do restante do reino animal, mas que o Homo sapiens e os chimpanzés compartilham um mesmo ancestral comum.
Desde então, as pesquisas demonstraram que os chimpanzés são incrivelmente próximos dos seres humanos, em termos genéticos. Eles compartilham cerca de 98,6% do nosso DNA.
“Este é o ponto”, destaca Goodall. “O comportamento que observamos hoje nos homens e nos chimpanzés, provavelmente, era daquele ancestral comum.”
“Por isso, podemos imaginar as pessoas da Idade da Pedra com longos relacionamentos amistosos entre seus familiares, usando pequenos galhos para se alimentar e se abraçando uns aos outros. Gosto de pensar nisso.”