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O primeiro dia do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus no processo criminal por suposta tentativa de golpe de Estado foi marcado por menções veladas às tentativas de pressão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de interferir no processo, pela ausência do réu mais esperado, e pelo embate entre as defesas dos réus sobre a validade ou não da delação premiada do tenente-coronel do Exército Mauro Cid, considerada uma das peças mais importantes do processo.
Bolsonaro é acusado de liderar organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano contra patrimônio da União; e deterioração de patrimônio tombado.
Além dele, são réus: o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), o almirante e ex-comandante da Marinha, Almir Garnier; o general e ex-ministro do gabinete de segurança institucional Augusto Heleno, o delegado da Polícia Federal e ex-ministro da Justiça Anderson Torres, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid, o general e ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, e o general ex-ministro da Casa Civil Walter Braga Netto.
Eles fazem parte do que ficou conhecido como o “núcleo crucial” da suposta trama golpista. Todos os réus alegam ser inocentes e pedem suas absolvições.
O primeiro dia foi dividido em duas partes.
A primeira, pela manhã, foi dedicada à leitura de um breve resumo do caso, feito pelo relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes, e pela leitura do relatório da acusação, feita pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet.
Na segunda parte, na parte da tarde, foi a vez dos advogados dos réus fazerem suas sustentações orais, que é o momento em que eles se dirigem aos cinco ministros da Primeira Turma do STF e discursam sobre os argumentos das defesas.
Confira abaixo os quatro principais momentos do primeiro dia de julgamento.
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Recados de Moraes a Trump
O momento mais marcante do primeiro dia de julgamento foi a série de manifestações de Alexandre de Moraes na abertura da sessão, enquanto fazia a leitura do resumo do caso.
Em falas consideradas não usuais por especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, Moraes defendeu a atuação do STF em relação ao caso e disse que a Corte não se dobraria a tentativas de interferência estrangeira.
“Hoje, iniciamos o julgamento e as conclusões das importantes relacionadas à tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, sempre dentro do devido processo legal do respeito à defesa contraditório e não admitindo qualquer ingerência interna ou externa na independência do Poder Judiciário”, disse Moraes.
A menção a “ingerência externa” acontece após o presidente Donald Trump vincular a imposição de tarifas de 50% sobre produtos exportados pelo Brasil aos Estados Unidos ao julgamento de Jair Bolsonaro, que ele classificou como uma “caça às bruxas” que deveria ser interrompida “imediatamente”.
Elas acontecem, também, após o governo americano aplicar sanções econômicas contra Moraes por meio da Lei Global Magnitsky, destinada a punir violadores de direitos humanos. O governo americano também revogou vistos de ministros do STF e de funcionários do governo federal.
Em outro trecho de sua fala, Moraes citou, sem mencionar nomes, a articulação organizada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que está vivendo nos Estados Unidos e é um dos principais defensores de sanções ao Brasil e a autoridades brasileiras em decorrência do julgamento de seu pai.
“Lamentavelmente, no curso desta ação penal, se constatou a existência de condutas dolosas e conscientes de uma verdadeira organização criminosa que de forma jamais vista anteriormente em nosso país, passou a agir de maneira covarde e traiçoeira com a finalidade de tentar coagir o poder judiciário, em especial, este Supremo Tribunal Federal, e submeter o funcionamento da Corte, ao crivo de outro Estado estrangeiro”, afirmou Moraes.
Em agosto, a Polícia Federal indiciou Eduardo e Jair Bolsonaro por suposta obstrução de justiça em razão da campanha junto aos Estados Unidos por sanções ao Brasil.
Para o doutor em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Aury Lopes Jr, a fala de Moraes teria ido além do “comum”.
“Geralmente a fase do relatório é uma fase de mero relatório. O que eu vi ali foi um ir além do normal, mas no sentido também de contextualizar esse julgamento, que é único diante não só dos últimos acontecimentos políticos, mas também do próprio crime envolvido, que é golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático”, diz.
A advogada constitucionalista Ana Laura Barbosa, professora de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), diz que as falas de Moraes também soaram pouco usuais.
“Não é usual contar com este tipo de manifestação na abertura de julgamentos na esfera criminal. Mas a fragilidade do contexto também é bastante particular”, diz a professora.
“Não é usual que o tribunal, seus ministros e o governo brasileiro sejam ameaçados e sancionados por outro país, e muito menos que essas sanções sejam instigadas por um deputado federal brasileiro – no caso, Eduardo Bolsonaro -, em uma tentativa evidente de interferir nos rumos deste julgamento”, afirma Barbosa.
Ausência de Bolsonaro
Considerado o principal réu do núcleo em julgamento nesta semana, Jair Bolsonaro não compareceu à sede da Primeira Turma do STF, em Brasília. Seu advogado, Celso Vilardi, afirmou que o ex-presidente não foi ao local por restrições de ordem médica.
“Ele tem problemas de saúde. Por isso não veio”, disse Vilardi à BBC News Brasil.
Bolsonaro está, desde o dia 30 de julho, em prisão domiciliar, na casa em que vive em um condomínio fechado em Brasília.
Sua equipe alega que ele vem sofrendo complicações ainda decorrentes das cirurgias às quais ele teve de ser submetido por conta da facada que recebeu durante a campanha eleitoral de 2018.
Desde então, Bolsonaro tem passado por diversos momentos de internação e realização de cirurgias.
A mais recente aconteceu em julho, quando ele foi internado em um hospital de São Paulo para uma nova operação.
Vilardi disse não haver previsão sobre se Bolsonaro irá ou não para as próximas sessões do STF, marcadas para amanhã (3/9) e para a semana que vem, quando deve ser finalizado o julgamento.
A ausência contrasta com a ida de Bolsonaro a sessões durante a fase de depoimentos ao STF, em junho, quando o ex-presidente esteve frente a frente com o relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes.
Bolsonaro, porém, não foi o único réu a não ir à sessão. O único dos oito réus a comparecer ao julgamento foi o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira.
À BBC News Brasil, ele disse estar confiante em sua absolvição.
“Confio na verdade e na defesa que apresentamos”.
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A batalha da delação de Mauro Cid
No lado das defesas, o debate sobre a validade da delação de Mauro Cid foi um dos destaques deste primeiro dia de julgamento.
O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro firmou um acordo de colaboração premiada com a PGR em troca de penas mais brandas.
As defesas dos outros réus, porém, dizem que a delação deveria ser cancelada porque Cid teria dado diferentes versões às autoridades, pressionado por ameaças de prisão.
A defesa do delator, por sua vez, diz que não houve coação e que Cid prestou diversos depoimentos apenas para dar esclarecimentos adicionais, a pedido da PF e da PGR.
O primeiro advogado de Mauro Cid a discursar, Jair Alves Pereira, citou o ministro Luiz Fux, que levantou questionamentos sobre a validade da delação devido aos vários depoimentos prestados por ele.
Essa fala de Fux ocorreu em março, quando o STF autorizou a abertura do processo contra Bolsonaro e os outros sete réus, informa Mariana Schreiber, de Brasília.
“Vossa Excelência disse que precisava ao final examinar a colaboração premiada porque ela teria feito onze colaborações. Eu vou só fazer uma ressalva aqui, ministro, porque ele fez uma colaboração, mas fez até mais de onze depoimentos”, disse.
O advogado sustenta que Cid não deu versões diferentes. Em vez disso, ele teria feito complementos aos seus primeiros depoimentos.
“Os depoimentos foram prestados, essencialmente, nos três primeiros dias. E o resto foram complementações que o delegado ia solicitando no curso”.
A própria PGR, porém, defendeu em suas alegações finais que a redução de pena garantida a Cid pela delação seja menor devido às “omissões” e “comportamento contraditório” em seus depoimentos.
Antes da retomada do julgamento no período da tarde, advogados do ex-presidente Jair Bolsonaro e do almirante Almir Garnier Santos criticaram o pedido da PGR para que os benefícios a Cid fossem reduzidos pelas supostas “omissões e contradições” de seus depoimentos. Para as defesas, isso deveria levar à anulação do acordo de colaboração.
“Isso é uma jabuticaba, isso nunca existiu”, criticou Demóstenes Torres, advogado de Almir Garnier.
“Se o sujeito cumpriu [o acordo], faz jus ao que foi pactuado [de redução de pena]. Não cumpriu, rescinde [a delação]. Agora, uma posição intermediária, até hoje, o Supremo não decidiu. Quem sabe, né?”, continuou.
Por causa disso, Demóstenes Torres, advogado do ex-comandante da marinha Garnier Santos, defendeu que a colaboração seja rescindida.
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Os longos elogios a ministros do STF
O quarto destaque do dia foi para um elemento comum para quem acompanha o universo jurídico, mas inusitado para os que, pela primeira vez, assistiram a um julgamento no STF: os alongados cumprimentos e elogios dos advogados aos magistrados da Corte.
Na sessão de hoje, a prática dessa tradição rendeu momentos engraçados e outros constrangendores.
O momento engraçado foi protagonizado por outro advogado de Mauro Cid, Cézar Bittencourt, um dos mais experientes entre os advogados de defesa dos réus.
Ele começou cumprimentando os integrantes da Primeira Turma e arrancou risos no quando se manifestou sobre o ministro Luiz Fux.
“Ministro Luiz Fux: sempre saudoso, sempre presente, sempre amoroso, sempre simpático, sempre atraente como são os cariocas. É uma honra muito grande, uma satisfação imensa”, disse Bitencourt.
Ministros e parte da plateia deram risadas após Bittencourt chamar Fux de “atraente”. Próximo a ser cumprimentado, o ministro Flávio Dino, que se senta ao lado de Fux, interrompeu a fala do advogado em tom de brincadeira. “Quero dizer que não aceito nada menos que isso”, disse o magistrado.
Bitencourt continuou sua fala mantendo o tom de brincadeira.
“Me comprometi, mas vossa excelência está acima disso, vem lá do norte com galhardia, elegância, tratamento, sabedoria com o talento tudo o que a gente precisa ter aqui”, afirmou o advogado.
O momento constrangedor aconteceu durante a sustentação oral da defesa do almirante Almir Garnier, feita pelo advogado e ex-senador Demóstenes Torres.
Torres, que já foi um dos políticos mais influentes do Brasil o final dos anos 2000 e o início dos anos 2010, passou 20 minutos dos 60 disponíveis para fazer sua fala, em cumprimentando os ministros da Primeira Turma.
O constrangimento foi criado quando Torres se direcionou ao presidente da turma, o ministro Cristiano Zanin e tocou em um dos pontos mais sensíveis da indicação do magistrado: o fato de ele ter sido o advogado responsável pela defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos processos da Operação Lava Jato.
“Quando o Supremo acolhe uma boa tese, os ministros não estão, em geral, agindo de ofício. Os ministros estão sendo provocados. Vossa excelência soube, com denodo, persistência, buscar esse seu apogeu na advocacia e isso, talvez, tenha facilitado, ou melhor, o indicado para ocupar esse altíssimo e honrado posto de ministro do STF. A vossa excelência, minhas homenagens”, disse Torres.
Zanin ouviu a fala de Torres sem esboçar reações. Os outros quatro ministros também assistiram calados à intervenção do advogado.
A ligação de Zanin com Lula é considerada um tema sensível porque sua indicação para a vaga de de Ricardo Lewandowski, em 2023, foi duramente criticada pela oposição.
Zanin ficou conhecido ao longo da Operação Lava Jato e, mais especificamente, em 2021, quando o STF anulou todas as condenações de Lula pela Operação Lava Jato depois que a Corte acatou sua tese de que os processos de Lula não deveriam ter sido julgados na 13ª Vara de Curitiba, comandada até novembro de 2018 pelo ex-juiz Sergio Moro.
O ministro Edson Fachin aceitou o pedido de Zanin, considerando que 13ª Vara de Curitiba “não era o juízo competente para processar e julgar Luiz Inácio Lula da Silva”.
Demóstenes Torres, por outro lado, é um antigo conhecido da cena política brasileira.
Em 2012, quando era senador, teve o mandato cassado por supostamente ter intercedido em favor do empresário Carlinhos Cachoeira, investigado por suas ligações com jogos de azar. O advogado passou 20 minutos dos 60 dedicados à sua sustentação oral cumprimentando os ministros da Primeira Turma.
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O que acontece agora?
O julgamento do chamado “núcleo crucial” da suposta trama golpista será retomado amanhã, às 9h. A previsão é que as defesas dos outros quatro réus façam suas sustentações orais até o encerramento da sessão, no início da tarde.
O julgamento será retomado na semana que vem com o início da leitura dos votos dos ministros. O primeiro a ler seu relatório será Alexandre de Moraes. São precisos três votos para formar maioria para a condenação ou absolvição de Bolsonaro e dos demais réus.
A expectativa é que o resultado do julgamento seja conhecido até o final da semana que vem.