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- Author, José Carlos Cueto
- Role, Correspondente da BBC News Mundo na Colômbia
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A frase foi escrita na última terça-feira (5/8) pelo presidente colombiano Gustavo Petro na rede social X e, de imediato, surpreendeu o Peru.
“Lemos com surpresa essas declarações atribuídas a Gustavo Petro. Lamentamos isso, porque claramente o presidente não foi devidamente informado sobre esse assunto”, disse à BBC o chanceler peruano Elmer Schialer.
Ao dizer “esse assunto”, Schialer se refere à soberania sobre a ilha de Santa Rosa.
Trata-se de uma pequena formação no meio do rio Amazonas, que emergiu na segunda metade do século 20 e é habitada por cerca de 3.000 pessoas. Lima considera parte de seu território na disputa com a Colômbia.
Especialistas em Relações Internacionais consultados pela BBC Mundo — serviço em espanhol da BBC — concordam que a “ilha é de ninguém”, pelo menos até que ambos os países reavaliem seus conjuntamente seus domínios, já que, quando Colômbia e Peru definiram seus limites, essas formações não existiam.
Em junho, o Congresso peruano aprovou “a criação do novo distrito de Santa Rosa de Loreto”, na ilha de Santa Rosa.
Na última terça-feira, contudo, além de expressar seu repúdio à medida, o presidente Petro anunciou que transferirá a comemoração da Batalha de Boyacá — fundamental para a independência da Colômbia no século 19 — para Leticia, a capital amazônica colombiana situada a poucos metros da ilha em disputa.
Fronteira viva
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Em 1922, Colômbia e Peru assinaram um tratado de fronteira em que definiram seus limites no Amazonas.
“O traçado do rio foi dividido entre os dois Estados não pela metade, mas pelo canal de navegação mais favorável, o mais profundo”, explica Walter Arávelo, professor de Direito Internacional da Universidade de Rosário, na Colômbia.
Esse tratado, segundo o historiador colombiano Felipe Arias Escobar, criou uma rejeição em ambos os lados, dando origem à guerra colombo-peruana de 1932, que acabou com a ratificação do acordo assinado em 1922.
“Foi um conflito a serviço do nacionalismo, que naquela época serviu para reforçar a identidade nacional”, afirma Arias Escobar, da Universidade Pontífica Javeriana.
Peru e Colômbia compartilham 116 quilômetros do rio Amazonas.
“Quando o tratado foi assinado, só existiam duas ilhas: a de Ronda e a de Chinería, que cresceu e se expandiu”, complementa Santiago Duque, professor na Universidade Nacional da Colômbia.
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Ou seja, a fronteira entre Colômbia e Peru é uma fronteira viva, em constante mudança, e ambos os países precisam revisá-la de tempos em tempos.
O problema é que esses países não fazem isso há anos.
Enquanto isso, a fronteira mudou: sedimentos provenientes dos Andes e arrastados pelo rio formaram novos territórios, cujo pertencimento ainda precisa ser definido.
Arévalo defende que a postura mais sensata é reativar uma comissão binacional para inspeção da fronteira, e que “nem o Peru nem ninguém deve aprovar uma lei dizendo, unilateralmente, que uma ilha é sua”.
“Este é o momento para que os países se sentem e revisem a nova situação geográfica e tomem decisões. Há mais de sete ilhas novas, entre elas a de Santa Rosa”, destaca Duque.
O que dizem o Peru e a Colômbia
O Peru defende que a circunscrição de Santa Rosa está sob sua soberania e jurisdição.
“O povo de Santa Rosa é parte integrante da ilha peruana de Chinería, atribuída ao Peru em 1929”, disse o governo peruano em comunicado divulgado na terça-feira.
Na mesma linha se pronunciou o chanceler do Peru, que defende que, mesmo que o canal mais profundo do rio Amazonas se desloque, “não significa que a fronteira também se mova”.
“Umas das ilhas atribuídas ao Peru foi Chinería e, por volta dos anos 50, o rio separou uma parte que depois passou a ser chamada de ilha Santa Rosa. Ela não nasceu nem surgiu, já fazia parte de Chinería”, afirma Schialer.
“O que aconteceu é que esse canal do rio logo se secou e a área reintegrou a Chinería. Santa Rosa não apenas foi peruana, como continua sendo peruana”, disse o chanceler à BBC.
Segundo o diplomata, desde 1970 foi construída uma escola, um escritório de migração e outro de administração aduaneira no local e “os colombianos nunca disseram nada”.
“Não devemos perguntar a uma nação amiga o que podemos ou não fazer em nosso território”, resume Schialer.
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No entanto, o Ministério das Relações Exteriores da Colômbia anunciou na terça-feira que apresentou contundentes notas de protesto ao governo peruano, solicitando a reativação da Comissão Mista Permanente para a Inspeção da Fronteira Colombo-Peruana (COMPERIF).
Segundo o ministério, o objetivo é que, “baseado em uma metodologia de atribuição, se decida sobre a soberania das ilhas formadas no curso do rio Amazonas depois de 1929”.
“Durante anos, a Colômbia tem defendido a necessidade de se realizar um trabalho conjunto para a atribuição das ilhas, e reitera sua posição de que a ‘ilha de Santa Rosa’ não foi atribuída ao Peru”, diz o comunicado.
Petro, por sua vez, afirma que o Peru está tomando uma decisão “unilateral e violadora”, que pode “fazer desaparecer Leticia como porto amazônico, tirando-lhe sua vida comercial”.
O presidente colombiano argumentou que “surgiram ilhas que estão ao norte da atual linha mais profunda, e o governo do Peru acabou de se apropriar delas por meio de uma lei, estabelecendo a capital de um município em um território que, pelo acordo, deveria pertencer à Colômbia”.
“O governo usará, antes de mais nada, os meios diplomáticos para defender a soberania nacional”, acrescentou.
O problema de Leticia
A cidade de Leticia enfrenta um desafio enorme.
Por causa da sedimentação, do desmatamento, e das mudanças climáticas, o rio Amazonas em frente à cidade está perdendo volume de água e se desviando em direção ao território peruano.
Um estudo da Faculdade de Minas da Universidade Nacional alertou recentemente sobre o risco de que a Colômbia possa perder sua conexão fluvial mais importante.
“Um modelo desenvolvido pela Marinha Nacional já previa, há alguns anos, que até 2030 o rio Amazons poderia deixar de passar em frente a Leticia durante a maior parte do ano. Hoje, o modelo se tornou uma realidade”, diz o estudo.
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“Se não houver uma ação imediata, Leticia deixará de ser uma cidade ribeirinha. As implicações vão além do fator simbólico; são culturais, econômicas e territoriais”, disse a professora Lilian Posada Garcia, que está envolvida nas pesquisas sobre o tema.
Petro teme que as ações do Peru em Santa Rosa e Chinería, de algum modo, “façam Leticia desaparecer como porto amazônico, tirando-lhe sua vida comercial”, conforme declarou em uma publicação no X.
Ao ser questionado sobre essa preocupação, o chanceler peruano garantiu à BBC que o Peru utilizaria os caminhos diplomáticas e de cooperação entre os países para “efetivamente ajudar o povo”.
Os alertas dos especialistas
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Com frequência, diversos analistas classificam como “manobras de distração” ou “tentativa de impor a agenda” várias das declarações de Petro, sem que isso necessariamente indique um objetivo além do impacto midiático.
Contudo, Sandra Borda, especialista em Relações Internacionais da Universidade dos Andes na Colômbia, disse que “desde o ano passado havia pessoas no governo alertando Petro sobre essa situação.”
“Desconheço o motivo dele decidir falar sobre isso agora, porque é uma questão séria. A Colômbia corre o risco de ver Leticia perder acesso ao rio, o que, estrategicamente, seria fatal para o país.”
Em julho de 2024, o então diretor de Soberania Territorial do Ministério de Assuntos Exteriores da Colômbia, Diego Cadena, declarou que a ilha Santa Rosa, localizada na fronteira amazônica, “não pertencia ao Peru” e “estaria ocupada de forma irregular”. Depois disso, ele ignorou a autoridade do prefeito de Santa Rosa, o peruano Iván Yovera.
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Por essa razão, o governo do Peru protestou junto ao encarregado de Negócios da Colômbia em Lima e reafirmou “os direitos de soberania e jurisdição sobre a ilha de Santa Rosa”
O então ministro peruano de Relações Exteriores, Javier González-Olaechea, deu a discussão por encerrada em 15 de julho de 2024, ao manifestar sua “satisfação” com a resposta do governo da Colômbia à nota de protesto emitida pelo seu país.
Petro e a presidente peruana, Dina Boluarte, têm vivido altos e baixos em seu relacionamento diplomático.
Após a destituição de Pedro Castillo do governo peruano e a chegada de Boluarte em 2022 como presidente constitucional até o fim do mandato em 2026, Petro criticou a legitimidade da nova presidente, o que resultou em um conflito diplomático que levou à retirada mútua de seus embaixadores em ambos os países.
As relações têm melhorado deste então, mas essa nova disputa ameaça reacender as tensões.