Crédito, Gustavo Moreno/STF
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- Author, Giulia Granchi
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
Para Fux, Bolsonaro não tem foro privilegiado — o direito de ser julgado diretamente pelo STF devido ao cargo que ocupava — porque não ocupa mais cargo com prerrogativa de ser julgado no Supremo. Segundo o ministro, o caso deveria ser analisado na primeira instância da Justiça comum.
“A prerrogativa de foro deixa de existir quando os cargos foram encerrados antes da ação (penal)”, afirmou o ministro, explicando que, como os réus não ocupavam mais os cargos públicos no momento em que o processo foi iniciado, o Supremo não teria competência para julgá-los.
“Estamos diante de uma incompetência absoluta” para julgar a ação. Fux defende, portanto, “anular o processo por incompetência” do Supremo.
A maioria dos ministros da Primeira Turma do STF discordou de Fux quando esse tema foi debatido na chegada do processo ao colegiado. Para eles, a prerrogativa de foro continua para Bolsonaro porque os crimes imputados teriam sido cometidos quando ele ainda era presidente e teriam ligação direta com a função ele exercia.
O ministro Fux também criticou a decisão de encaminhar o caso para a Primeira Turma, em vez de mantê-lo no plenário.
Segundo ele, ao reduzir a análise para apenas alguns ministros, estariam sendo silenciadas vozes importantes que poderiam influenciar a avaliação dos fatos.
“A Constituição Federal não se refere às Turmas, ela se refere ao plenário, e seria ideal que tudo fosse julgado pelo plenário do STF com a racionalidade funcional”, disse. Fux afirmou ainda que, como os demais casos envolvendo os fatos foram julgados em plenário, o restante do julgamento deveria seguir a mesma lógica. “Ou o processo deve ir para o plenário ou tem de descer para a primeira instância”, completou.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o voto de Luiz Fux pode abrir caminho para a defesa de Bolsonaro tentar anular o processo, mas apenas se mais algum ministro acompanhar o posição de Fux. Faltam votar os ministros Cármen Lúcia e Cristiano Zanin.
“O voto do ministro Fux, se for o único nesse sentido, não altera o resultado do julgamento. Para que a defesa pudesse recorrer ao plenário por meio de embargos de divergência — recurso que busca fazer com que o colegiado analise a questão — seriam necessários pelo menos dois votos no mesmo sentido”, explica Pierpaolo Bottini, advogado e professor de direito penal da USP.
A advogada criminalista Juliana Bertholdi, professora na pós-graduação da PUC do Paraná, reforça que, além de outro ministro acompanhar Fux, a defesa precisaria apresentar a argumentação durante a sustentação oral para tentar levar o processo ao plenário.
“O momento para a defesa se manifestar sobre nulidade seria durante a sustentação oral. Para ter algum caminho, seria necessário que outro ministro acompanhasse o Fux, abrindo possibilidade de embargos infringentes e levando o processo ao plenário”, explica.
Para Clara Borges, professora do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR (Universidade Federal do Paraná), julgamentos feitos apenas pela turma podem beneficiar a defesa. “Isso porque se houver embargos infringentes [um recurso que leva a discussão para o plenário do STF] o colegiado maior poderá reanalisar o caso. Para que isso aconteça, são necessários pelo menos dois votos favoráveis ao réu”.
Crédito, Gustavo Moreno/STF
Julgamento deveria ou não ser feito pelo STF?
O tema do foro privilegiado e da competência judicial tem gerado debates sobre por que Bolsonaro está sendo julgado diretamente no STF, enquanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi julgados desde a primeira instância no caso da compra e reforma de um apartamento em Guarujá, no litoral de São Paulo.
De acordo com Bottini, o regimento interno do Supremo permite que o relator envie um caso ao plenário quando considera que há relevância jurídica na discussão. No caso de Bolsonaro, o relator entendeu que, apesar da grande repercussão política, os temas jurídicos já foram debatidos pelo plenário anteriormente. Por isso, segundo ele, não seria necessário julgar o caso novamente nesse colegiado.
Na avaliação de Bertholdi, o termo “foro privilegiado” não seria o mais adequado: “Acho que o melhor nome seria ‘prerrogativa de função’, porque não necessariamente há um privilégio.
Na prática, essa questão favorece a defesa dos réus, pois o julgamento correu muito rápido. Mais do que nunca, ficou claro que não temos um foro privilegiado, mas sim uma prerrogativa de função.”
Ela detalha que existem diferentes formas de interpretar a prerrogativa de foro.
“Pode estar ligada à pessoa ou ao cargo. Se estiver ligada à pessoa, acompanha mesmo depois que o indivíduo deixa o cargo. Já se estiver ligada ao cargo, ela acaba automaticamente quando o mandato termina.”
Há ainda, explica Bertholdi, uma terceira interpretação: mesmo que a pessoa não ocupe mais o cargo, se o crime foi cometido enquanto ela exercia a função, o foro por prerrogativa de função ainda se aplicaria, garantindo que o julgamento seja feito na instância competente para esse tipo de caso.
“A competência do STF é inquestionável, porque, de acordo com a Constituição e o princípio do juiz natural, a competência é fixada no momento da consumação do crime. No caso do julgamento de Bolsonaro, isso teria ocorrido durante as eleições, com a obstrução da votação. Mesmo que depois a pessoa deixe o cargo, ela continua a ser julgada pelo STF. Esse tem sido o posicionamento da Corte”, acrescenta Clara Borges.
Prevalece atualmente no Supremo o entendimento de que o foro privilegiado permanece mesmo após a autoridade deixar o cargo, quando os crimes julgados tiverem sido cometidos durante o mandato e tiverem ligação com a função. Esse entendimento foi estabelecido para evitar que autoridades renunciassem aos mandatos penas para escapar de serem julgados no Supremo.
Bertholdi se alinha a essa posição: “Entendo que, como os acusados cometeram os delitos enquanto detinham prerrogativa de foro, deveriam responder no STF.”
Sobre a argumentação de Fux, a advogada reconhece que há racionalidade jurídica, mas não considera o melhor fundamento. “Entendo que, a partir do momento em que o crime é cometido durante o exercício do cargo, deve haver a prerrogativa de função acompanhando o agente.”
Quanto às chances de a defesa de Bolsonaro conseguir anular o processo com base no voto de Fux, Bertholdi avalia que seria necessário o apoio de outro ministro para abrir caminho a embargos infringentes e levar o processo ao plenário.
Ela destaca ainda que a posição de Fux não é isolada, mas o desfecho do caso continua incerto.
“Um voto que chama atenção é o da ministra Carmen Lúcia. Na ADI 2797, ela afirmou que o foro por prerrogativa de função deve ser interpretado de acordo com princípios republicanos e democráticos, restringindo a prerrogativa apenas ao período em que a pessoa está exercendo o cargo. [Essa posição estaria alinhada à do ministro Fux.] Durante o julgamento atual, a posição da ministra parece convergir com o voto do ministro Alexandre de Moraes, o que mantém o desfecho ainda incerto.”
Crédito, Gustavo Moreno/STF
Revisões do julgamento no futuro?
Revisões do julgamento no futuro?
O voto de Fux sobre a anulação do processo e a discussão sobre foro privilegiado e competência abrem espaço para reflexões sobre o que pode acontecer mais adiante. Especialistas lembram que, diante de divergências jurídicas e da composição variável do Supremo, decisões do caso Bolsonaro poderiam ser contestadas ou até mesmo anuladas no futuro.
“Eu acredito que sim. Nossa jurisprudência é muito instável, sobretudo da Suprema Corte. Muitas vezes a mesma composição do Supremo dá várias interpretações diferentes aos mesmos dispositivos legais e constitucionais”, afirmou a advogada Maíra Beauchamp Salomi, do escritório Salomi Advocacia Criminal e vice-presidente da Comissão de Estudos de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo, em entrevista publicada no início de setembro.
Por outro lado, Salomi ressalta que, como a decisão está sendo tomada pelo colegiado mais graduado do país, é mais difícil que haja uma revisão profunda do resultado agora.
Juristas também destacam que o julgamento de Bolsonaro ocorre em condições excepcionais, com ataques institucionais internos e pressões externas, como sanções internacionais e medidas de governos estrangeiros. “O Supremo mais acertou do que errou. Temos que ter uma visão um pouco sistêmica”, afirma Salomi.
Ela acrescenta: “Não podemos nos esquecer que tudo isso é uma briga institucional. Se o Supremo não corre, estamos vendo o que está acontecendo no Congresso com a PEC da Blindagem. Tivemos tarifaço, estamos tendo a pressão de uma grande potência atacando os nossos ministros. E isso é inequívoco.”
Segundo a advogada, o STF precisa equilibrar cautela e rigor: “O Supremo fica em uma situação muito delicada entre seguir esse processo da maneira adequada, de modo a não trazer uma excepcionalidade para o caso, mas também não pode relaxar em relação ao julgamento, porque temos ataques de outras ordens.”
*Com informações de reportagem de Daniel Gallas